“O homem perdeu a capacidade de prever e de prevenir. Ele terminará por destruir a Terra”
Albert Schweitzer, teólogo luterano

O Dia Mundial do Meio Ambiente – 5 de junho – nos oferece uma oportunidade preciosa de refletir sobre a preservação da vida em sua totalidade — e por quais razões não fazemos isso. No Gênesis, após ter concluído parte da criação, “viu Deus tudo quanto tinha feito, e eis que era muito bom” (Gn 1.31). Plantas, animais, rios, florestas, pedras, etc. Quem de nós cria algo que considera “muito bom” e fica feliz ao ver alguém destruindo sua criação? Somos imagem e semelhança do Criador (Gn 1.26). Será que Deus fica feliz quando destruímos a sua criação?
Vivemos um tempo em que a Terra geme. As queimadas avançam sobre florestas milenares, os rios agonizam contaminados por rejeitos de mineração e resíduos industriais, o solo se empobrece diante de um modelo agrícola baseado na monocultura e pelo uso indiscriminado e descontrolado de agrotóxicos, e o ar das grandes cidades se torna mais poluído a cada ano. O planeta, nossa Casa Comum, está sendo explorado até os limites do ável. Em muitos lugares, esses limites já foram ultraados. Desde os primeiros dias da grande aventura humana, a Bíblia nos recorda que a Terra é obra das mãos amorosas de Deus e que nossa vocação é cultivar, cuidar e guardar (Gn 2.15). Não fomos chamados/as a dominar de forma exploratória, mas a cuidar com reverência. No Salmo 24, lemos: “Do Senhor é a Terra e tudo o que nela existe” — um lembrete de que somos es, e não donos, dos bens naturais.
A crise climática não é apenas ambiental: ela é estrutural, social e espiritual. Ela nasce da lógica de dominação e acúmulo que coloca o lucro acima da vida, que transforma a natureza em mera mercadoria e que trata toda a criação como recurso a ser explorado. É essa lógica predatória que se opõe, por exemplo, ao que aprendemos em Levítico 25.2-4. Ali, Deus ordena que o solo também descanse. É preciso haver descanso para que haja renovação.
Em que momento deixamos de ver a criação como sagrada?
Para responder a essa pergunta, precisamos reconhecer uma ruptura que se deu — teológica, cultural e histórica — ao longo dos séculos, quando o olhar sobre a natureza deixou de ser do uso cuidadoso e sustentável e ou a ser um mero objeto instrumentalizado a serviço das necessidades humanas.
Na Bíblia, especialmente no Gênesis, a criação é apresentada como uma extensão do amor e da sabedoria de Deus. Como já acima exposto, cada parte da criação — luz, águas, árvores, animais — foi chamada de “boa” antes mesmo da existência humana. Isso mostra que o mundo não é valioso apenas por nos servir, mas por existir em si, como obra divina.
No entanto, ao longo da história, principalmente a partir da modernidade e da ascensão do pensamento racionalista, a natureza ou a ser vista como um “objeto” à disposição do ser humano — algo a ser dominado, controlado, explorado. Esse olhar pode ter tido raízes em hermenêuticas distorcidas, a partir de leituras como Gênesis 1.28, quando Deus diz: “Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e sujeitai-a.” A palavra “sujeitar”, ao ser descolada do seu contexto original de cuidado, foi interpretada como licença para devastar e destruir.
É aí que a sacralidade da criação começou a se perder. Esse processo de dessacralização se aprofundou com a lógica capitalista moderna, que transformou tudo em mercadoria, inclusive a terra, a água, o ar e os animais. A natureza deixou de ser nossa irmã, como dizia São Francisco de Assis, para se tornar um recurso a ser explorado ao máximo. Essa mentalidade alimentou toda uma indústria de destruição ambiental.
A Bíblia, no entanto, nos convida a um outro caminho. Isaías 55 fala da criação louvando a Deus: “Os montes e colinas irromperão em cânticos diante de vocês, e todas as árvores do campo baterão palmas.” Essa visão sagrada da criação reaparece com força nos ensinamentos de Jesus, que recorria às aves do céu e aos lírios do campo para nos ensinar sobre confiança, beleza e providência (Mt 6:26-30).
Recuperar a sacralidade da criação é um exercício espiritual urgente. Significa voltar a ver a Terra não como um depósito de matéria-prima, mas como o santuário vivo de Deus. Como disse o apóstolo Paulo, “a criação aguarda ansiosamente a manifestação dos filhos de Deus” (Rm 8:19). A pergunta que nos cabe, então, é: que filhos/as temos sido?
Em nossos tempos, a missão cristã deve incluir esse resgate: curar os olhos para ver novamente o sagrado no chão, no rio, no vento, na floresta, na vida que pulsa fora dos templos. A Terra não é apenas um lar — é uma dádiva. Redescobrir isso talvez seja o primeiro o para reverter o curso da destruição que testemunhamos.
O que falta para acordarmos para a realidade de que toda vida é de Deus?
Talvez nos falte ouvido espiritual. Como o profeta Jeremias descreveu em seu tempo: “Ouvidos têm, mas não ouvem” (Jr 5.21). Vivemos cercados de sinais — o colapso climático, os rios morrendo, as florestas ardendo, os animais desaparecendo — mas insistimos em caminhar como se não fosse conosco. A natureza está gritando, clamando como uma profeta ferida, e ainda assim permanecemos surdos, distraídos, anestesiados.
Esquecemos que a vida não é nossa posse e que a Terra não é “recurso”, é dom; não é território de conquista, é altar de convivência. Mas essa verdade — de que a vida é de Deus — não vale apenas para árvores, rios e animais; ela também vale para as pessoas. A destruição da natureza é, ao mesmo tempo, um ataque à sacralidade da vida humana, principalmente da vida dos mais vulneráveis. Os desastres ambientais não são democráticos: eles atingem de maneira desproporcional as populações empobrecidas, indígenas, quilombolas, periféricas, pescadoras artesanais, agricultoras familiares, ribeirinhas. São essas as pessoas que mais sofrem com a falta de água potável, com o calor extremo, com a insegurança alimentar, com a mineração predatória.
A destruição ambiental, portanto, é também uma violação dos direitos humanos. Uma violação do direito à vida plena. Como falar em direito à saúde, quando os rios estão contaminados? Como falar em dignidade, quando o alimento é envenenado?
Quando matamos a floresta, matamos também os povos da floresta e subvertemos o mandamento do “não matarás”. Quando degradamos os biomas, comprometemos as vidas humanas que deles dependem. É por isso que a fé cristã precisa estar comprometida com todo o meio ambiente. “Eu vim para que todos tenham vida, e a tenham em abundância” (Jo 10:10). Isso inclui a vida da Terra, a vida dos povos, a vida de toda a Criação. Caso contrário, estamos pregando um amor radical (o de Cristo), mas vivendo em desacordo.
Acordar para essa realidade é, no fundo, uma questão de conversão. Não uma conversão ao medo ou à culpa, mas ao amor. Um amor radical pela vida — em todas as suas formas. Até lá, resta-nos a oração do Salmo 90: “Ensina-nos a contar os nossos dias, para que alcancemos um coração sábio.” Um coração que veja, escute e aja. Antes que seja tarde.
Texto produzido pela Equipe CONIC em parceria com a Equipe CESE